Cientistas Realizam Avanço Inédito no Mapeamento do Cérebro de Camundongos
O cérebro humano é um mistério que fascina e desafia a ciência. Mesmo um pequeno fragmento de tecido neural, do tamanho de um grão de areia, pode conter uma complexidade impressionante, com centenas de milhares de células interconectadas por intricadas redes. Em 1979, o renomado neurocientista Francis Crick, vencedor do Prêmio Nobel, declarou que a compreensão da anatomia e atividade cerebral dentro de um milímetro cúbico de tecido sempre estaria além do alcance humano.
“Não adianta pedir o impossível”, afirmava Crick, mas quarenta e seis anos depois, um grupo de mais de cem cientistas conseguiu quebrar essa barreira utilizando camundongos como modelo de estudo. A equipe registrou a atividade celular e mapeou a estrutura cerebral em uma amostra de menos de 1% do volume total do cérebro, coletando impressionantes 1,6 petabytes de dados — o equivalente a mais de 22 anos de gravações em alta definição.
Davi Bock, neurocientista da Universidade de Vermont, que não participou do estudo publicado na revista Nature, descreve a conquista como um marco. Para ele, os avanços recentes oferecem uma nova perspectiva: mapear todo o sistema de conexões do cérebro de um camundongo. “É totalmente viável, e acho que vale a pena fazer”, complementa Bock.
Mais de um século se passou desde que o neurocientista espanhol Santiago Ramón y Cajal (1852-1934) utilizou o microscópio para observar neurônios individuais pela primeira vez, desvendando suas formas ramificadas únicas. Desde então, gerações de cientistas aprofundaram o entendimento sobre como os neurônios transmitem impulsos elétricos através de estruturas denominadas axônios, contatando os dendritos de neurônios vizinhos e gerando reações que podem, tanto excitar quanto inibir a atividade dos neurônios adjacentes. Esse complexo jogo de excitação e inibição é o que fundamenta o pensamento humano, mas a maneira exata pela qual isso ocorre ainda é uma questão em aberto, especialmente diante da dificuldade dos cientistas em estudar múltiplos neurônios simultaneamente.
Nos últimos anos, inovações tecnológicas têm permitido aos pesquisadores uma nova abordagem ao estudo cerebral. Em 1986, um grupo de cientistas britânicos publicou o primeiro circuito cerebral mapeado de um pequeno verme, composto por 302 neurônios. Posteriormente, outros estudos foram realizados em organismos maiores, como a mosca, que possui 140 mil neurônios. Mas seria possível, afinal, alcançar o sonho de Crick?
Em 2016, um projeto do governo dos Estados Unidos, avaliado em 100 milhões de dólares, foi lançado com o intuito de escanear um milímetro cúbico do cérebro de camundongos. Pertencente ao programa Machine Intelligence from Cortical Networks (Microns), a iniciativa está sob a liderança de pesquisadores do Instituto Allen de Ciência do Cérebro, da Universidade de Princeton e do Baylor College of Medicine.
O foco da pesquisa foi uma área do cérebro do camundongo responsável por receber informações visuais e reconstrui-las. Durante a primeira fase do estudo, os cientistas registraram a atividade neuronal enquanto o camundongo assistia a vídeos. Após a coleta de dados, o cérebro foi dissecado, e o milímetro cúbico em questão foi submetido a um processo químico de endurecimento. A equipe cortou o tecido em 28 mil seções, capturando imagens de cada uma, que foram posteriormente organizadas em um modelo tridimensional por computadores programados para reconhecer as células.
O resultado não foi pequeno: 200 mil neurônios e 523 milhões de conexões neurais foram mapeados. “Ver essas células emergindo na tela foi impressionante”, disse o biólogo Nuno da Costa, um dos líderes do projeto. Para compreender a dinâmica dessa rede neuronal, Costa e sua equipe analisaram a atividade registrada durante a exibição dos vídeos.
Comparando essa atividade com um laboratório social, ele metaforicamente descreveu: “Imagine que você está em uma festa com 80 mil pessoas e consegue captar o murmurinho de cada conversa, mas sem saber quem está falando com quem. Agora, considere que você tem uma maneira de entender as conexões, embora não tenha conhecimento do conteúdo das conversas. Com essas duas informações, você conseguirá contar uma história mais coerente sobre o que acontece na festa.”
Com a análise dos dados, a equipe identificou padrões de conexão até então invisíveis, como tipos específicos de neurônios inibitórios que conectam-se exclusivamente a certos outros neurônios. A bióloga Mariela Petkova, da Universidade de Harvard e que não participou do estudo, comentou: “No início, a complexidade é assustadora, mas encontrar regras de conexão é uma vitória. O cérebro é muito menos confuso do que pensamos.”
O neurocientista Sebastian Seung, da Universidade de Princeton e membro do projeto Microns, ressaltou que a similaridade entre os cérebros de camundongos e humanos pode fornecer informações valiosas para o desenvolvimento de tratamentos para distúrbios psicológicos, diminuindo os efeitos colaterais adversos. “Nossos métodos atuais de manipulação do sistema nervoso são bastante imprecisos. A capacidade de manipular tipos específicos de células seria um avanço significativo”, explicou Seung.
Os esforços para mapear todo o cérebro de um camundongo contam com o apoio financeiro de um programa longo-durante dos Institutos Nacionais de Saúde, intitulado Brain. Entretanto, o futuro do projeto é incerto, especialmente com os cortes recentes no orçamento da iniciativa, que sofreram uma redução de 40% no ano passado e mais 20% no mês passado, após a assinatura de um novo projeto de lei pelo presidente Donald Trump.
Bock mencionou que projetos de mapeamento cerebral, como o Microns, são de longo prazo e exigem a criação contínua de novas tecnologias. “Precisamos de estabilidade e previsibilidade no financiamento da ciência para alcançar objetivos de longo alcance”, concluiu.
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