Avanços Promissores no Tratamento da Dor Crônica: Nova Molécula canabinoide Sem Efeitos Psicoativos
O tratamento da dor crônica ainda depende amplamente do uso de opioides, substâncias eficazes, mas ao mesmo tempo viciantes e potencialmente fatais se utilizadas de forma inadequada. Diante desse panorama preocupante, pesquisadores da Escola de Medicina da Universidade de Washington, em colaboração com a Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, desenvolveram um novo composto que imita uma molécula natural encontrada na cannabis. De acordo com um estudo recente publicado na revista Nature, esta nova substância apresenta propriedades analgésicas semelhantes às da planta, mas sem o risco de dependência ou efeitos neurológicos.
A pesquisa, liderada pela professora Susruta Majumdar, especializada em anestesiologia na Universidade de Washington, é um passo significativo na busca por alternativas aos opioides. “Há uma necessidade urgente de desenvolver tratamentos não viciantes para a dor crônica, e esse tem sido o foco principal do meu laboratório nos últimos 15 anos”, afirma Majumdar. A especialista detalha que a nova molécula se liga aos receptores de dor no corpo e, devido ao seu design, não atinge o cérebro, evitando assim os efeitos psicoativos como alterações de humor e os riscos de vícios, já que não ativa os mecanismos de recompensa.
Uso da Cannabis Medicinal
Luís Otávio Caboclo destaca que a cannabis medicinal tem sido utilizada em diversos tratamentos, especialmente na neurologia e na psiquiatria. “É comum vê-la sendo aplicada em casos de epilepsia de difícil controle e dor crônica. Também é usada para controlar sintomas em pacientes com demência, como a doença de Alzheimer e até em algumas situações relacionadas ao autismo”, explica Caboclo, ressaltando que ainda há muito a ser investigado para que haja evidências mais robustas sobre a eficácia do tratamento.
No entanto, os efeitos psicoativos decorrentes das moléculas canabinoides que se conectam aos receptores CB1 no cérebro e no sistema nervoso periférico ainda limitam o uso terapêutico. “Os ensaios clínicos também avaliaram se a cannabis proporciona alívio da dor a longo prazo, mas os efeitos colaterais psicoativos têm sido um obstáculo”, afirma Robert Gereau, coautor do estudo e diretor do WashU Medicine Pain Center.
Desenvolvimento da Nova Molécula Canabinoide
A nova pesquisa destaca a criação de uma molécula canabinoide com carga positiva, desenvolvida por Vipin Rangari, colaborador do estudo. A substância foi projetada para não cruzar a barreira hematoencefálica, interagindo apenas com os receptores CB1 localizados fora do cérebro. Os testes realizados em camundongos com dor induzida mostraram que, ao aplicar o composto, foi possível eliminar a hipersensibilidade ao toque. Notavelmente, os animais não desenvolveram tolerância ao tratamento, mesmo após nove dias de administração contínua, um desafio comum com analgésicos opioides que geralmente requerem doses crescentes para manter seus efeitos.
A modelagem computacional realizada pelos pesquisadores da Universidade de Stanford revelou um “bolso oculto” no receptor CB1, que poderia ser utilizado para a ligação da nova molécula canabinoide. Esse bolso se abre rapidamente, permitindo a ligação da molécula e minimizando os efeitos associados ao desenvolvimento de tolerância. “Projetar moléculas que aliviam a dor com efeitos colaterais mínimos é um grande desafio”, ressalta Majumdar, que se mostra otimista com os resultados. O próximo passo consiste em transformar o composto em um medicamento oral que possa ser testado em ensaios clínicos.
Perspectivas para o Novo Tratamento
Daniel Benzecry de Almeida, neurocirurgião e chefe do Grupo de Tratamento da Dor do Hospital INC, comenta sobre a importância do novo tratamento. Apesar do curto período de acompanhamento nos estudos, a capacidade de não necessitar ajustes de doses regulares e manter a eficiência é considerada essencial para evitar a escalada de doses, um problema recorrente com analgésicos potentes.
Fernanda Herculano, neurologista no Centro Especializado em Neurologia do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, observa que muitos pacientes com dor crônica passam por diversos tipos de tratamento e enfrentam dificuldades significativas. “Esse composto pode ser uma alternativa viável para pessoas que dependem de opioides, especialmente aquelas com questões de tolerância e dependência. Se os ensaios clínicos confirmarem a segurança e eficácia em humanos, essa nova opção poderá ser menos arriscada”, afirma, ressaltando que a transição entre tratamentos deve ser feita com cautela.
Por sua vez, Cristiane de Almeida Cordeiro, especialista em medicina interna e cuidados paliativos do Hospital Sírio Libanês, destaca os avanços em relação aos canabinoides. “Atualmente, há muitas pesquisas sobre a aplicação dos canabinoides, mas ainda não há um consenso na literatura científica sobre seu papel como tratamento de primeira linha. Embora sejam promissores, eles ainda não possuem o mesmo poder analgésico que os opioides. Precisamos de mais pesquisas para desenvolver compostos que possam substituí-los no tratamento de dores intensas, sem comprometer a qualidade de vida dos pacientes”, acrescenta.
Desafios no Manejo da Dor Crônica
Marta Rodrigues de Carvalho, neurologista do hospital Anchieta, frisa que manejar a dor crônica é uma questão multifatorial. “Essa condição é um desafio clínico para os profissionais de saúde, pois afeta todos os aspectos biopsicossociais do paciente. Não há um biomarcador ou exame específico que possa determinar o nível exato de dor do paciente; isso porque a dor é subjetiva e variável”, explica.
Os principais objetivos do tratamento são proporcionar alívio contínuo, melhorar a funcionalidade e a qualidade de vida, minimizando os efeitos colaterais. O tratamento deve também ser financeiramente viável, visto que a dor crônica é uma condição permanente. O futuro no manejo da dor crônica depende dos avanços na neurociência, do desenvolvimento de biomarcadores, de abordagens personalizadas e da integração de diferentes modalidades terapêuticas. O fármaco apresentado nesse estudo pode se tornar uma ferramenta adjuvante poderosa nesse contexto.
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