A vitória de Sem Chão (“No Other Land”, em inglês) no Oscar de Melhor Documentário deveria ter sido um momento de celebração tanto para o cinema quanto para as sociedades palestina e israelense. Essa rara ocasião de reconhecimento conjunto entre artistas de ambas as comunidades, no entanto, foi recebida com disparidade de sentimentos. A repercussão do filme se tornou um microcosmo da própria luta que ele busca documentar, com o ministro da Cultura de Israel caracterizando a vitória como “um momento triste para o mundo do cinema”.
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“Sem Chão” documenta a destruição e as tentativas de deslocamento forçado na região da Cisjordânia conhecida como Masafer Yatta, entre 2019 e 2023, sob a perspectiva palestina, que tem suas casas demolidas pelo exército israelense e enfrenta o assédio de colonos.
O grande diferencial do filme é uma história dentro da história: a amizade e a resistência que surge entre dois dos quatro cineastas, um palestino e um israelense. As conquistas do filme, tanto em termos narrativos quanto emocionais, foram reconhecidas logo no início, ao conquistar o prêmio de Melhor Documentário na Berlinale de 2024.
Contudo, o sucesso trouxe reações adversas. No palco da premiação em Berlim, o cineasta palestino Basel Adra pediu à Alemanha que interrompesse a exportação de armas para Israel. Seu co-criador judeu-israelense, Yuval Abraham, destacou que, ao voltarem para casa, enfrentariam realidades desiguais: ele, com liberdade de movimento, e Adra, sem essa liberdade. Abraham mencionou isso como um sistema de apartheid, provocando indignação na mídia israelense e gerando repercussões entre aliados alemães.
Antes de retornarem ao Oriente Médio, Abraham recebeu ameaças de morte, sua família foi assediada e uma multidão cercou sua residência. Embora essa ameaça imediata tenha diminuído, o filme ainda busca um contrato de distribuição nos cinemas dos Estados Unidos.
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Durante o Oscar, os cineastas reafirmaram suas mensagens que ecoaram em Berlim. “‘Sem Chão’ reflete a dura realidade que temos suportado por décadas”, disse Adra. Abraham completou: “Vivemos em um regime onde eu sou livre sob leis civis e Basel está sob leis militares. Não conseguem ver que estamos entrelaçados?”
Ainda assim, nem todos foram tocados pela imagem poderosa dos quatro cineastas — dois palestinos e dois israelenses — segurando juntos suas estatuetas douradas. Ao vencer, a equipe desafiava a lógica de soma zero que predomina na região.
No dia seguinte ao prêmio, o ministro da Cultura de Israel, Miki Zohar, enviou uma carta às instituições culturais do país, instando-as a não exibirem o filme. Segundo ele, Sem Chão era um exemplo de que fundos públicos não deveriam apoiar conteúdos que “servem aos inimigos do Estado”.
Zohar utilizou o filme como um exemplo das regulamentações que defende para limitar o financiamento público de projetos que não estejam alinhados com uma perspectiva pró-Israel.
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Apesar de o filme não ter recebido financiamento público, seu sucesso sob hostilidade governamental é uma crítica a um sistema que se esforça para silenciar a dissidência ao invés de promovê-la.
Esse cenário de indignação não é novo em Israel: um funcionário do governo expressa indignação e, logo em seguida, o ecossistema de extremismo se mobiliza. Logo, memes incendiários enchem as redes sociais.
Em um país onde a incitação tem um histórico grave, isso não pode ser tratado como mera retórica. Essa postura é um chamado à ação, evidenciando que dizer a verdade em Israel pode facilmente colocar a vida em risco.
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Tanto a reação negativa quanto à celebração do filme não partiram somente do lado israelense. A Campanha Palestina pelo Boicote Acadêmico e Cultural a Israel também se manifestou criticamente sobre Sem Chão, evitando, porém, pedir um boicote.
O grupo expressou preocupações, incluindo alegações de que os cineastas não haviam condenado suficientemente as ações de Israel na atual guerra em Gaza e que o projeto recebeu apoio de uma organização vista como “engajada na normalização”.
Reducionar os cineastas palestinos a meros fantoches de seus colegas israelenses é uma simplificação grosseira, ignorando o fato de que Basel Adra é um ativista e jornalista em uma das áreas mais vulneráveis da Cisjordânia, cercada por colonos violentos.
Ambos os cineastas reconhecem que a arte tem um papel essencial na educação do público e na promoção de mudanças. Sem Chão oferece um olhar sobre as experiências palestinas ao longo das décadas e as realidades no terreno.
Para quem vive essa realidade diariamente, a situação apenas piora, o que torna o apoio a este filme ainda mais relevante.
A perspectiva de Adra é autêntica, íntima e urgente. Sua luta para salvar sua vila da destruição não é teórica, mas uma questão física e imediata. Após retornar da cerimônia do Oscar em Los Angeles, ele postou em rede social sobre mais um ataque a uma vila palestina.
Por sua vez, o papel de Abraham é igualmente significante. Como destacou um líder comunitário a uma revista palestino-israelense, “sem a ajuda de ativistas judeus como Yuval, nossa luta por Masafer Yatta já teria perdido muito mais.”
Ele continuou: “Yuval e outros viveram conosco, enfrentando, lado a lado, soldados e colonos. Convido todos os críticos a experimentarem essa vida por uma semana, para ver se ainda pediriam o boicote ao filme.”
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As políticas do governo israelense visam invisibilizar os palestinos e rotular seus aliados israelenses como traidores. O impacto desse fenômeno se estende além do Oriente Médio. Após a vitória no Oscar, o prefeito de Miami Beach ameaçou despejar um cinema local por exibir Sem Chão.
Embora o movimento Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS) esteja focado na libertação do povo palestino, suas ações em relação a este filme minam um trabalho conjunto que critica diretamente o governo israelense.
“Sem Chão” é mais do que um simples documentário — trata-se de uma afirmação, um desafio e um ato de resistência. Resta saber se nossas comunidades conseguirão aproveitar essa oportunidade para se unir, em vez de sucumbir à divisão promovida por reações governamentais ou estabelecimentos. Se houver esperança para o futuro, ela reside exatamente nas parcerias e na colaboração que os cineastas chamam de “corresistência”.
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