Reflexões sobre a Violência no Rio de Janeiro: Um Clamor por Mudança
Na minha primeira viagem ao Haiti, tive a oportunidade de me hospedar na residência de um diplomata brasileiro. Ao me preparar para dormir, na primeira noite, ecoaram alguns tiros ao longe. Relaxe, pensei: “estou em casa, isso parece o Rio”. Contudo, décadas depois, o cenário mudou e aquele Rio, que antes era apenas um eco distante, se transformou em um teatro de guerra. Em um fim de semana recente, fui acordado por um intenso tiroteio, onde o som das metralhadoras e dos fuzis parecia ressoar pela cidade. Por alguns instantes, a impressão que tive foi estar no centro de um conflito armado, como na Ucrânia ou em Gaza.
De volta à cama, tentei me convencer de que poderia dormir em paz, pensando que a munição havia terminado. Impossível, refleti, manter um tiroteio por tanto tempo. Entretanto, minutos depois, o barulho retornou com ainda mais intensidade. O estrondo das metralhadoras ficava cada vez mais alto, e os disparos eram mais nítidos. Mesmo assim, voltei a acreditar que as balas haviam sido gastas até que a guerra reiniciou, desta vez com uma força ainda maior.
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Violência
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Adolescente morto a caminho do trabalho sonhava cursar faculdade de dança e tinha dois empregos: ‘Ajudava muito a mãe’, diz tia
É extremamente inquietante ouvir esse tipo de barulho tão perto. Nosso prédio, felizmente, está parcialmente protegido. “Aqui, não corremos risco de balas perdidas”, pensei. Mas e no Morro do Pavão? Ali, o terrorismo sonoro é ainda mais aterrorizante, e as balas podem atingir facilmente os barracos, colocando em risco a vida de mulheres e crianças, algo que se assemelha a Gaza.
Nos dias seguintes, esperei ansiosamente por notícias nos jornais que elucidassem a sequência de tiroteios. Entretanto, o que encontrei foi ainda mais alarmante: uma série de áudios revelando a cumplicidade entre o chefe do tráfico e o comandante da UPP, no Complexo do Alemão. A parceria entre eles era explícita, discutindo estratégias em comum.
Esta não é a primeira vez que me vejo na posição de escrever sobre tal situação. Sinto-me como aqueles personagens de um romance que pressentem a chegada dos bárbaros, mas não conseguem transmitir a urgência da mensagem. O que será necessário para entender o Rio como um purgatório repleto de beleza e caos, como descrito em canções populares? Os sinais estão claros: o território perdido aumenta, os tiroteios se intensificam e as armas tornam-se cada vez mais pesadas, enquanto a munição flui abundantemente.
É verdade que as manhãs são mais agradáveis e que o sol brilha com mais intensidade durante esses dias de maio. Mas de que adianta tanta beleza se caminhamos em direção ao caos? Como podem crianças aproveitar esse encanto se passam a noite aterrorizadas pelo barulho incessante dos tiros? A esperança é algo desejável, mas não posso ignorar o peso que se ergue à nossa frente, um obstáculo a ser superado.
Há um projeto em andamento que envolve a união de diferentes esferas governamentais, inclusive o federal, para estabelecer uma força-tarefa em segurança pública. No entanto, essa iniciativa ainda patina, devido à fratura irreparável entre governo e oposição. Se for implementada, o que se espera é apenas uma nova estrutura legal. O que realmente é necessário é um investimento significativo em dinheiro, organização e, principalmente, prática efetiva em campo.
No cenário do Rio de Janeiro, para que as coisas funcionem, é urgente fazer uma “faxina” no sistema. Com tantas denúncias envolvendo a polícia, não será possível avançar enquanto parte dela estiver comprometida com o crime. Lembro-me das dificuldades enfrentadas no Haiti: no início, era impossível combater as gangues em Cité Soleil e Bel Air sem o apoio da polícia. O combate à máfia em Nova York é outro exemplo. A cidade precisou de um investimento significativo em recursos e da atuação de uma força-tarefa especial do FBI.
Infelizmente, não dispomos de uma estrutura assim no Brasil, e a situação do Rio é ainda mais alarmante do que aquela vivida em Nova York na época. Desarticular a ocupação armada em nosso território não é suficiente. É fundamental garantir a presença do Estado para libertar milhões de pessoas que habitam os morros e comunidades periféricas. Este é um desafio imenso, e, por ora, o que ouvimos são apenas os ecos de tiroteios e notícias de vítimas da violência desenfreada.
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